the bear, coqueiros cibernéticos e somos todos críticos na internet
um ensaio sobre experiência, contexto e paranoia
a ideia para a edição de hoje surgiu quando eu tava rolando o feed do instagram e me deparei com uma crítica à série the bear.
num vídeo de alguns minutos, a autora apontava alguns motivos pelos quais todo mundo ali precisava de terapia, explicava porque o protagonista era um cara problemático, e por fim concluía que, devido a tudo isso, a série era ruim.
teríamos muita coisa a desempacotar aqui…
mas hoje vamos falar sobre o estado de coisas do que chamamos de internet, e o fato de que estamos nos distanciando cada vez mais das capacidades humanas do diálogo e da experiência genuína.
já aviso que essa tá meio longa. pega teu cafezinho e segue o fio:
a crise é estética
preciso começar dizendo: the bear é uma das minhas séries favoritas.
ela te pega de um jeito que quando você menos espera já tá completamente imersa na experiência do que tá sendo apresentado.
o caos, a ansiedade, o estresse da cozinha de um restaurante; a quietude, a delicadeza, a sensibilidade que encontram espaço nas relações que vão se forjando entre os personagens. você vive isso tudo enquanto assiste.
o conteúdo tá tão entrelaçado à própria experiência estética da obra que, pra quem tá prestando atenção e se deixando afetar, sobra pouco espaço para julgamentos morais imediatos. e talvez o problema seja justamente esse: pouquíssima gente tá prestando atenção, e quase ninguém tá se deixando afetar.
acontece que se deixar afetar é premente. a condição basilar para a experiência é exatamente a atitude desinteressada, ou seja, a suspensão da necessidade de entender, julgar, criticar, racionalizar. pra que a experiência aconteça, é preciso primeiramente se colocar disponível para ela. é preciso abrir espaço para que novos sentidos sejam criados. e só a partir desses novos sentidos extrair então uma opinião.
susan sontag certa vez escreveu: “o que uma obra de arte faz é nos levar a ver ou compreender algo singular, e não julgar nem generalizar”.
somos todos críticos na internet?
eis que na internet contemporânea, se pudéssemos tirar todo o julgamento e a generalização, custo a acreditar que sobraria alguma coisa.
as pessoas por aqui parecem presas à necessidade de formar uma opinião sobre tudo — de maneira que se distanciam cada vez mais dessa atitude desinteressada, dessa capacidade de se entregar à experiência. me refiro à capacidade humana de sermos afetados subjetivamente por uma obra sem instantaneamente querer julgá-la e buscar alguma consideração intelectual imediata, sabe?
na internet não há mais espaço pra isso. estamos constantemente vestindo o chapéu de críticos sociais e culturais, e não há tempo para a experiência de consumir um conteúdo ou uma obra. consumir, igual o fogo consome a madeira para então criar algo novo. me parece que estamos todos ocupados demais formando opiniões sérias, socialmente conscientes, politicamente corretas. pulamos a potencial vulnerabilidade da experiência e vamos direto para o que nos interessa: desvendar o que há de errado, inconsistente, e incoerente com o mundo ao nosso redor.
e com certa razão. estamos cansados de sermos iludidos pela grande mídia e pelo capitalismo. portanto viramos o jogo: desconfiamos de absolutamente tudo e não aceitamos nada pelo que nos é apresentado. criamos uma distância segura de tudo que poderia nos afetar, e um olhar atento para não cairmos em nenhuma armadilha.
enquanto eu pesquisava mais sobre isso, na tentativa de entender como chegamos até aqui, descobri que esse pessimismo, essa intelectualização excessiva, essa aura de que precisamos estar sempre atentos para desvendar o que há por trás de tudo que aparece na nossa frente tem tudo a ver com dois conceitos bem interessantes: hermenêutica da suspeita e leitura paranoica. peço breve licença para ser um pouco nerd nos próximos parágrafos.
hermenêutica da suspeita parece um termo complicado (especialmente pra quem é de exatas como eu) mas nada mais é do que essa atitude desconfiada que parte da premissa de que há sempre algo mais profundo a ser revelado por detrás do que tá sendo dito. já a leitura paranoica, termo introduzido pela teórica literária e queer Eve Kosofsky Sedgwick, vai um passo além: é uma desconfiança mais extrema, que já antecipa e se coloca em alerta para significados e intenções negativos em um dado discurso.
esses dois conceitos, que foram muito utilizados no contexto da interpretação crítica no século passado, hoje parecem explicar muito bem essa onda de descrença e pessimismo que temos visto na internet.
voltando àquela crítica que eu trouxe lá no início sobre a série the bear, a busca por desvendar os motivos pelos quais um ou outro personagem é problemático e o impulso de trazer isso à tona em detrimento de todos os outros afetos que poderiam ser despertados pelo enredo são um bom exemplo de como a leitura paranoica tem aparecido no contexto da internet contemporânea.
nesse ensaio em vídeo intitulado Critique Culture: Why Can’t We Enjoy Anything Anymore? (Cultura da crítica: por que não conseguimos apreciar mais nada?) Robin Waldun traz todos esses conceitos que falei até aqui e o argumento de que essa suspeita profundamente enraizada que estamos vendo na internet hoje em dia marca de fato um ressurgimento repaginado desse movimento que emergiu na teoria crítica do século XX. agora, a figura desse crítico pessimista, desconfiado e mau-humorado1 parece ter escapado da academia para o mainstream, e se revela na forma como todos nós consumimos conteúdo online.
e acho que faz sentido.
ao que parece, somos todos críticos na internet2.
caindo de um coqueiro cibernético
ainda dentro dessa conversa, cabe relembrar que, na internet governada por algoritmos, a gente invariavelmente acaba exposto a conteúdos que reforçam nossos pensamentos e opiniões. são as chamadas echo chambers, ou câmaras de eco.
na prática o que acontece é que, no conforto dos nossos feeds, raramente somos confrontados. e quando somos, o caos se instaura.
a sensação é que tá todo mundo sempre brigando ou se defendendo por aqui. como se toda opinião compartilhada fosse um enunciado escrito em pedra; não há diálogo, não há espaço para troca, não há nuance. não estamos interessados em aprender, ouvir, ou nos entender: queremos estar certos.
e temos dado cada vez menos atenção ao contexto.
isso se deve, em grande medida, à fragmentação da informação: ao fato de que nas redes sociais a informação é quebrada em pequenas partes (um tweet, um story, um reel) e pode ser disseminada e consumida de maneira completamente desconexa do contexto original.
nessa edição da (fantástica) newsletter intern3t!!!11, Clara Browne explora como se dá o processo da linguagem na comunicação, e traz o conceito de situação — o nome técnico pra esse contexto que falei aqui em cima, ou “as condições do ato da linguagem. […] quem tá falando, pra quem tá falando, quando e onde tá falando, e como tá falando.” é o conjunto de tudo isso que nos ajuda a entender o que tá sendo dito.
acontece que com o fenômeno da fragmentação, esses elementos de quem, pra quem, quando e onde são retirados da equação, e as coisas simplesmente chegam para nós como pedaços individuais, alheios a qualquer outra coisa que veio antes ou depois. ficamos sem baliza para entender o que tá acontecendo.
pra colocar uma cereja nesse bolo, os algoritmos passaram a nos mostrar quase que exclusivamente o conteúdo de pessoas que não conhecemos, nunca vimos antes, e não sabemos de onde vieram. essa passou a ser a norma de como consumimos e interagimos com a informação nas redes sociais.
e aí eu pergunto, parafraseando a mãe da kamala harris: vocês acham que simplesmente caíram de um coqueiro?3
bom, nada nem ninguém simplesmente caiu de um coqueiro na internet. as coisas de fato existem num contexto. e estamos progressivamente nos esquecendo disso.
então mergulhamos ainda mais fundo no loop infinito de crítica, autodefesa, opiniões insuladas e uma tolerância quase inexistente a qualquer pensamento que se oponha ou até acrescente alguma coisa ao nosso. ficamos cada vez mais fechados em nós mesmos e em nossa bolha. a internet vira puro caos e pretensão.
e se há algo que podemos dizer sobre a pretensão, é que ela é o início do fim4.
existe saída?
dito tudo isso, cumpre destacar que tudo que falei até aqui tem muita relação com a própria estrutura da internet e o contexto em que ela foi criada5 — e um problema sistêmico não pode ser resolvido simplesmente com mudanças no campo individual. ainda assim, trago algumas breves reflexões pra que a gente comece a repensar a forma como consumimos e reagimos a conteúdos por aqui:
o repertório
como podemos nos abrir mais para a experiência? essa não é uma pergunta simples, mas um bom ponto de partida é nos colocando em mais experiências6.
pois é. precisamos ampliar nossos repertórios. nos expor a mais coisas, sair da nossa bolha, nos deixar afetar por aquilo que consumimos antes de pular para a racionalização.
claro que nem todo conteúdo ou obra nos causará algum impacto subjetivo; mas acho que um bom caminho é começarmos a identificar, apreciar e nos expor àqueles que causam.
a leitura reparadora
voltando àquela história de leitura paranoica, a mesma Eve Sedgwick que cunhou o termo também o questionava, sugerindo como alternativa o que ela chamou de leitura reparadora. a ideia seria substituir a tentativa de antecipar intenções negativas e opressoras pela busca de significados positivos e construtivos. algo como direcionar ativamente nossa atenção também (embora não só) para aquilo que nos causa afetos positivos, e começar a desenvolver o espaço e a linguagem para isso.
a leitura paranoica já foi necessária em diversos contextos, e muitas vezes ainda é. o problema é quando ela se torna a norma. esse é um convite para buscarmos o equilíbrio entre uma postura crítica com relação ao mundo (que não deve ser descartada) e uma capacidade de também estarmos abertos a surpresas, buscando reconhecer o que podemos extrair de belo ou interessante até mesmo daquilo com que não concordamos totalmente7.
o diálogo
percebo que cada vez mais as redes sociais tem inviabilizado o espaço para o diálogo. quando publicamos ou consumimos conteúdos online, mais estamos interagindo com telas e números do que com seres humanos. há pouca oportunidade para a troca, para a dúvida, para a curiosidade. como falei ali em cima, a informação fica fragmentada e se encerra em pequenos pedacinhos que muitas vezes não contam a história toda.
penso que uma alternativa a tudo isso seria procurarmos engajar mais ativamente — inclusive buscando espaços offline — com aquilo que consumimos e que nos interessa.
é importante que a gente se lembre que nada caiu de um coqueiro. as coisas são sempre mais complexas do que parecem. e a capacidade de enxergar e entender essas nuances é justamente umas das coisas que nos fazem humanos.
☕️
💌 notas da autora e conversinhas paralelas
oof. sempre que publico um ensaio mais longo me sinto na responsabilidade de acrescentar um disclaimer: eu escrevo sobre o que tenho curiosidade de saber mais e não só sobre o que já sei. o que trago pra cá é sempre um convite para a conversa.
o que você pensa sobre essa loucurinha toda? a sessão de comentários e a minha caixa de entrada estão sempre abertas pra gente prolongar esse papo!
todas as refs foram apresentadas ao longo do texto ou estão listadas aqui embaixo. reforço o convite para quem se interessou por esse assunto dar uma olhada ✨
te vejo nas próximas,
-Larissa
não custa destacar: nem toda crítica é pessimista, desconfiada e mau humorada. aqui nesse texto estou me referindo especificamente a essa corrente que emergiu no fim do século passado e que trazia essa roupagem.
além do ensaio em vídeo que citei acima, Waldun explora essa ideia também no ensaio Critique is The Mood of the Internet, or, The Myth of Being “Surrounded By Idiots”, publicado aqui no substack. vale a leitura!
pra quem quiser entender melhor essa história de kamala harris e coqueiros, essa matéria resume bem todo o rolê. 🥥🌴
ouvi essa frase nesse vídeo da barbara migliori com a vic ceridono, e provavelmente vou repetir ela pro resto da vida.
Clara Browne ataca novamente, dessa vez nos explicando que a internet também não caiu de um coqueiro, e surgiu em um contexto bastante específico:
mais sobre isso no ensaio: O limiar da experiência estética: contribuições para pensar um percurso de subjetivação.
o ensaio original de Sedgwick, Leitura paranoica e leitura reparadora, ou, você é tão paranoico que provavelmente pensa que este ensaio é sobre você, é bastante complicado e confesso que precisei da ajuda dos universitários para conseguir extrair alguma coisa do texto. esse vídeo em especial (em inglês) tem zero pretensão e entrega absolutamente tudo, explorando muito bem todos os conceitos que eu trouxe aqui.
Que texto sensacional! Já salvei nos meus favoritos ;)
A verdade é que de fato as pessoas não estão prestando atenção. Quantas já não conseguem mais assistir um filme sem verificar o celular o tempo todo né? E sempre buscando nas entrelinhas os erros do outro. Talvez seja uma forma de não encarar as próprias sombras!
Ainda não assisti o The Bear, mas já fui inspirada pela sua escrita!
Adorei o texto! O mais engraçado é que me lembrou muito um vídeo recente do Cogumelando sobre a crise da diversão no universo gamer. Tô me inspirando em escrever sobre isso, pois me vejo afetado em várias esferas.
Eu amei o caos de The Bear, na última temporada, inclusive alguns episódios me causaram a sensação de estar num dia estressante no trabalho haha
https://youtu.be/mVxkYvHC940?si=l0TP_BechDPLj5S5