A relação das mulheres com o dinheiro é um assunto que tem me interessado há um bom tempo.
Na verdade, quando penso no tema “mulheres e dinheiro” entendo como Virginia Woolf deve ter se sentido quando perguntada sobre o tema “mulheres e ficção”. Penso não numa ideia genérica e subjetiva da coisa, mas sim no significado material de ser uma mulher que ganha e administra seu próprio dinheiro no século XXI.
Desde que recebi meu primeiro salário como jovem aprendiz tenho o hábito de poupar e investir uma quantia, mesmo que pequena, todos os meses. É como um compromisso pessoal, um ato de auto cuidado do qual nunca abri mão. Penso que o dinheiro que faço hoje é também da minha eu do futuro — e da minha eu do passado. Vez ou outra compro alguma coisa que já foi sonho um dia, e dedico àquela versão minha que desejou tanto aquilo e não pôde ter. Todos os meses invisto um percentual do que ganho, e dedico à minha versão do futuro que terá acesso a coisas que hoje ainda nem posso imaginar.
Isso pra mim é algo tão habitual que frequentemente esqueço que ser uma mulher que ganha e administra seu dinheiro é um conceito recente. Até 1962, por exemplo, as mulheres casadas só podiam trabalhar fora, abrir conta no banco ou ter estabelecimento comercial com a autorização dos maridos1. O código civil as considerava “incapazes”, e designava ao marido “a administração dos bens comuns e dos particulares da mulher”, além da responsabilidade por “prover a mantença da família”.
Tivesse eu nascido algumas gerações atrás, essa seria minha realidade. Então reconheço o privilégio que tenho de ter nascido quando nasci, e de ter vivido uma adolescência em que o acesso à educação e a perspectiva de ser uma mulher que trabalha e faz seu próprio dinheiro já eram coisas possíveis para mim.
Meus livros favoritos na adolescência eram os da Meg Cabot, principalmente os da trilogia Boy. São três histórias separadas mas que seguem uma mesma linha de comédia romântica que hoje chamaríamos de enemies to lovers (ou inimigos para amantes): garota conhece garoto, eles se odeiam, até que se apaixonam, e vivem felizes para sempre. Meu sonho era ser como elas: morar em uma cidade grande, trabalhar em uma grande empresa, acidentalmente encontrar o amor da minha vida em alguma situação completamente impossível — e ser feliz para sempre.
Nada desse plano acabou acontecendo (assunto para outra newsletter), mas o fato é que trabalhar e ganhar meu próprio dinheiro não só sempre foi uma possibilidade pra mim como também uma certeza.

Minhas duas avós, por outro lado, viveram boa parte da vida como “donas de casa”. O principal trabalho delas foi o doméstico, ou seja, não remunerado. Elas não precisavam administrar seu próprio dinheiro, não como eu faço hoje, porque isso era papel dos homens.
Cuidar do futuro sempre esteve nas mãos dos homens.
Então, a pergunta que vem me martelando há meses: como o fato de nunca termos precisado administrar nosso próprio dinheiro até muito recentemente afeta a relação que temos com nosso dinheiro hoje?
Raramente o assunto dinheiro vira pauta nos podcasts, vídeos do Youtube ou newsletters do Substack feitos por mulheres. E quando viram — esse ponto é muito importante — sempre parecem referenciar o universo masculino: mulheres de terno2, planilhas em cores sóbrias, uma tentativa de aproximar o teor da conversa àquele mais comumente encontrado em rodas masculinas.
Me pergunto como as mulheres cuidariam do seu dinheiro em um mundo em que não fossem quase que inconscientemente levadas a fazer isso da maneira masculina. Espelhando o que eles fazem e fizeram por milhares de anos.
Escreveu Virginia Woolf no ensaio Um Teto Todo Seu, originalmente uma série de palestras sobre o tema “As mulheres e a ficção”:
Seria mil vezes uma pena se as mulheres escrevessem como os homens ou vivessem como eles, ou se parecessem com eles, pois se dois sexos já é um fato bastante inadequado considerando a vasta variedade do mundo, como faríamos com apenas um?
Quando abro as redes sociais, vejo mulheres falando sobre dinheiro como “garotas” (a exemplo do fenômeno “girl math”, que se popularizou no TikTok alguns meses atrás) ou como os homens. No primeiro caso, o que vejo é uma grande infantilização do feminino, como se fôssemos incapazes de pensar de maneira séria e responsável sobre coisas que demandam uma consideração séria e responsável. No segundo, arrisco a polêmica de pegar carona com Woolf e dizer: acho uma pena que as mulheres olhem para o dinheiro, e falem sobre ele, como os homens. Que precisem fazer isso para serem levadas a sério.
Por outro lado, entendo que o assunto ainda parece distante, chato, impossível. Também pudera, nunca foi assunto nosso.
Um estudo da Coleman Parkes Research para o BNY Mellon Investment Management indica que, se o público feminino investisse na mesma proporção com a qual os homens investem, a indústria mundial de fundos de investimentos poderia ter US$ 3 trilhões a mais sob gestão. O mesmo estudo diz que 86% dos gestores de fundo admitem que seus clientes padrões são homens3.
O Raio X do Investidor Brasileiro, publicado anualmente pela Anbima, traz o dado de que o número de mulheres brasileiras que afirmam investir em algum produto financeiro foi de 35% em 2023, um aumento de 2% em relação ao ano anterior, mas ainda inferior ao percentual masculino de 40%4. Do total de investidores da b3, a bolsa de valores brasileira, apenas 25,44% são mulheres. Ou seja, de cada 4 pessoas físicas investidoras em ações (e outros produtos de renda variável), apenas 1 é mulher5.
Esses são apenas alguns números, mas o ponto que quero trazer é: o dinheiro sempre foi domínio dos homens, e mesmo agora, quando já temos acesso a ele6, parece que ainda é. E acho que precisamos começar a falar mais sobre isso.
Devo confessar que não tenho respostas. Esse será um daqueles textos anticlimáticos em que a autora reclama sobre algo sem nunca oferecer alternativa, resposta ou solução. Mas essas são questões que me ocorrem com frequência, e que pouquíssimas vezes viram tema de conversa por aqui. E o que é essa newsletter se não também um canal para eu falar sobre aquilo que me ocorre, ainda que nos limites da minha própria percepção e ignorância?
O fato é que, em uma sociedade capitalista, cuidar do nosso dinheiro é também cuidar da nossa liberdade. Finalizo citando bell hooks:
[A] autossuficiência econômica é necessária para a libertação das mulheres. […] [A] autossuficiência econômica é necessária se mulheres quiserem ser livres para escolher o contrário da dominação masculina, para serem totalmente autorrealizadas.
☕️
💌 conversinhas paralelas e notas da autora
Confesso estar me sentindo um pouco apreensiva de publicar essa newsletter. Talvez esse seja um assunto polêmico, e que certamente tem muitas nuances, mas eu queria abrir essa conversa por aqui. Para devolver um pouco de leveza para esta edição, trago recomendações e papinhos:
🥇 Para ler: sou zero a pessoa dos esportes e confesso não estar lá muito engajada em acompanhar as Olimpíadas, mas a cobertura do Matheus de Souza, Medo e Delírio nas Olimpíadas de Paris, tá absolutamente imperdível.
🎧 Para ouvir: essa tem sido minha playlist oficial de trabalho nos últimos tempos.
🪩 Para assistir (e fazer em casa): sou uma introvertida assumida e não consigo lembrar a última vez que fui a uma balada. Dito isso, não escapei a internet nos últimos dois meses e fiquei completamente viciada no disco novo da Charli xcx, BRAT. Nesse vídeo para a Vogue, Charli ensina a fazer a icônica brat makeup e me deixa com vontade de assumir uma persona party girl (só pra ter uma desculpa pra copiar o look do lado de cá).
Por hoje é só. Te vejo na próxima!
-Larissa
Mesma fonte da referência 3.
Dentro de um recorte socioeconômico ainda restrito, é importante adicionar. Em tempo: todo esse texto parte de um recorte socioeconômico bastante específico, e infelizmente não retrata a realidade de boa parte das mulheres no Brasil hoje.
Eu consegui ver duas autoras que já estudei no seu texto. A primeira é a Antropologa dinamarquesa Marie Kolling, ela estuda o crédito nas periferias de Salvador faz uns 10 anos, além de ter uma escrita para o português muito boa. Tive uma aula com ela e suas ideias sobre crédito e essa relação com as mulheres em situação de pobreza são incríveis.
A segunda autora é a Viviane Elizer, especificamente no seu texto "O Significado social do dinheiro". Nele ela da um apanhado geral da relação do dinheiro do homem e o dinheiro da mulher, e critica essa autoridade opressora do homem com o dinheiro, uma discussão que você traz aqui também.
Primeiro queria dizer que amei o texto! A questão sobre mulheres pensarem em dinheiro como homens nunca havia me ocorrido, e você foi muito elucidante, mesmo quando não traz uma resposta, no fim, algumas dúvidas já são melhores que certezas, assim acredito.
Realmente não tem muito tempo que as mulheres conquistaram espaço para a sua independência financeira e diversos outros direitos na sociedade, ao mesmo tempo que causa revolta, ainda é preciso se desafiar a pensar o mundo de outra forma. Assusta pensar que no mundo capitalista de hoje essa imagem de mulheres que agem como o mundo dos homens comanda ser a única forma que nos apresentam de sucesso. (ou pelo menos que conheço, dentro dos meus limites e ignorância tbm KKKKKK)
Espero que essa visão possa se ampliar para que mais mulheres compartilhem dessa discussão e a gente possa enxergar um mundo fora da ótica comumente masculina.
Ps. Isso até me lembrou alguns questionamentos que tive enquanto lia Os sete maridos de Evelyn Hugo da Taylor Jenkins. Espero poder ler Bell Hooks nas próximas semanas! Abraços!